Autonomia,
Estados Pluriétnicos
e
Plurinacionais
Consuelo
Sánchez
ENAH - Escuela Nacional de Antropología e Historia
México
konsuelomx@yahoo.com.mx
AutonoMiA,
EStAdoS PluriétniCoS E PlurinACionAiS
INstItuto dE Estudos socIoEcoNômIcos – INEsc 65
Atualmente, mais de 350 milhões de pessoas no mundo
pertencem a cerca de 5000 grupos étnicos distribuídos em mais de 100 Estados
nacionais. A grande maioria desses agrupamentos é de povos indígenas,
habitantes originários de territórios que foram incorporados e submetidos à
jurisdição de um Estado-nação, e que, até hoje, estão normalmente oprimidos e
privados de seus direitos enquanto povos.
Essa é a condição política geral que une a todos os povos
indígenas do mundo. Ela está relacionada ao fato de que eles sustentam e
desejam sustentar com legitimidade as suas formas de vida. Tal aspiração se
manifestou com mais força nos últimos anos em suas lutas pela autodeterminação.
Recentemente, os povos indígenas conseguiram que o seu
direito à livre determinação fosse reconhecido pela Declaração das Nações Unidas
sobre os Direitos dos Povos
Indígenas (aprovada em 13
de setembro de 2007). O preâmbulo da declaração estabelece que os povos
indígenas são iguais a todos os demais povos e, por isso, têm direitos iguais
de acordo com o sistema jurídico internacional. A Declaração também reconhece o
direito de “todos os povos serem diferentes, considerarem a si mesmos como
diferentes e serem respeitados como tais”. De acordo com essas considerações, o
artigo 3 desse instrumento internacional afirma que “Os povos indígenas têm
direito à livre determinação. Em virtude desse direito, determinam livremente
sua condição política e buscam livremente o seu desenvolvimento econômico,
social e cultural” (Assembléia Geral da ONU, 2007).
O direito à livre determinação é um principio geral que
precisa se concretizar. Por ele, tem-se dito que é importante especificar que
uma coisa é o princípio geral do direito à livre determinação, enquanto que
outra são os diversos caminhos concretos que podem se derivar do exercício
desse
direito,
e que vão desde (a) a conformação de entes autônomos sob o marco de um Estado
pré-existente até (b) a independência e a constituição de um Estado nacional
próprio (Díaz-Polanco, 1996: 157-164).
É precisamente pelo direito à livre determinação que os
povos indígenas têm a opção de decidirem que tipo de organização política
querem adotar. A preferência expressa pela maioria das organizações indígenas
em seus documentos e declarações tem sido a de exercer o direito à livre determinação
dentro dos países em que estão inseridos os povos indígenas, ou seja, a
tendência geral não tem sido de separação e constituição de um Estado nacional
próprio, mas sim de garantir a manutenção e o desenvolvimento de suas próprias
formas de vida sociocultural sob o marco de seus respectivos âmbitos estatais,
por meio da autonomia, do autogoverno ou outro regime semelhante. Vale lembrar
que, ainda que a tendência comum aos movimentos indígenas tenha sido a de
concretizar seu direito à livre determinação no âmbito dos Estados em que estão
incluídos, os mecanismos que eles propõem para alcançá-la não são homogêneos. É
certo que se tem generalizado a adoção da autonomia. Mas mesmo nesse caso, as
perspectivas para alcançála terminam diferindo de acordo com o movimento
indígena de cada país, e também dentro de um mesmo país. Levando em conta a
variedade de posturas sobre a autonomia na América Latina, podemos vislumbrar
um esquema dos distintos tipos de enfoques. De modo concreto, podemos
distinguir:
• Organizações indígenas que reivindicam a autonomia, e
as que não o fazem de modo explícito. Entre as que reivindicam a autonomia,
podem existir diversas interpretações sobre:
• Os elementos da autonomia: a) organizações que associam
a autonomia com uma ou várias das suas partes componentes (com o controle do
território, o autogoverno, a prestação da justiça ou a participação nos órgãos
decisórios nacionais, etc.); e b) organizações que relacionam a autonomia a
todas as suas partes constitutivas (autogoverno, território com jurisdição,
competências e faculdades, participação e representação nos órgãos decisórios
nacionais).
• Os mecanismos para garantir a autonomia: a)
organizações que consideram imprescindível o estabelecimento da autonomia com
regime jurídico-político no seio da sociedade nacional em que estão inseridas;
e b) organizações que não consideram a necessidade de instituir o regime de
autonomia, mas apenas definir, dentro dos povos indígenas, o seu próprio status
político.
• Os níveis ou âmbitos territoriais para os grupos que
querem exercer a autonomia (comunal, municipal, regional, territórios,
resguardos, etc.): a) organizações que enfatizam um deles e b)organizações que
defendem a simultaneidade de todos os âmbitos possíveis.
• As condições para a realização da autonomia: a)
organizações que consideram que a autonomia pode ser exercida de forma isolada
e sem mudanças na natureza e na estrutura do Estado; b) organizações que
defendem que a autonomia deve ocorrer sob o marco de uma profunda reforma
política de alcance nacional, da qual derivariam transformações na estrutura
sociopolítica, econômica, cultural e territorial do Estado; e c) organizações
que defendem a criação de uma nova Constituição que configure um Estado
plurinacional ou pluriétnico, onde o regime de autonomia viria a ser um
elemento fundamental.
Essas variações costumam se articular. Por exemplo, os
movimentos indígenas que reclamam a autonomia com todas as suas partes
essenciais costumam concebê-la como um regime de autonomia que implica
necessariamente em transformações profundas na estrutura do Estado. Ademais, as
interpretações dos movimentos indígenas sobre a autonomia não são fixas e podem
se modificar de acordo com os processos sociopolíticos nacionais. Ocorre que
certos movimentos indígenas, que não consideravam a autonomia como parte de
suas reivindicações, conseguem mudar de enfoque em um contexto de
transformações políticas nacionais, articulando a exigência da autonomia e a
exigência de configurar um Estado plurinacional, como ocorreu na Bolívia. No
outro extremo, movimentos indígenas que tinham conseguido construir um projeto
autônomo como veículo de transformação da natureza e da estrutura do Estado
nacional, mas que não se alinharam às forças políticas nacionais para pressionar
pelas mudanças nacionais e alcançar as metas que buscavam, tenderam a se
fragmentar e a se recolher aos seus espaços locais e regionais, como aconteceu
no México. Mesmo assim, essa situação ainda pode se reverter, e os povos
indígenas podem sair do seu confinamento e retomar a iniciativa política.
Em todo caso, esses exemplos mostram a incidência de dois
fatores centrais na dinâmica dos movimentos pela autonomia: o entorno
sociopolítico nacional e as estratégias adotadas pelo movimento indigenista em
cada contexto nacional. Esses fatores também influenciam nas mudanças de
discurso dos movimentos indígenas a respeito da autonomia. Em um momento de
ativação política nacional com impulsos transformadores, o movimento indígena
tende a afirmar perante o Estado e a sociedade nacional a demanda do
reconhecimento do direito dos seus povos à livre determinação pelo
estabelecimento da autonomia. Em outro momento de retração e declínio no
movimento indígena, o discurso tende a se fragmentar e algumas partes do
movimento tendem a enfatizar quase de maneira exclusiva a rearticulação interna
(de seus povos e comunidades), para fazerem valer sua autonomia ou seu
autogoverno sem o reconhecimento do Estado.
Para explicar as variações nas noções de autonomia entre
os movimentos indígenas, é preciso levar em conta os fatores apontados acima.
Mas existe outro motivo que, a meu ver, está relacionado à falta de clareza
sobre os conceitos de autonomia e livre determinação (ou autodeterminação), e
que conforma um regime de autonomia e seus elementos constitutivos. Esse motivo
é reconhecido por muitos líderes indígenas de vários países da América Latina,
que, por meio dele, estão promovendo a reflexão e a discussão em seus
respectivos países sobre tais conceitos e suas implicações para a definição de
estratégias, a caracterização de seu movimento e a unificação de critérios em
torno de um projeto político (Marimán, Caniuqueo, Millalén e Levil, 2006:
253-271). Por esse motivo, é necessário examinar brevemente o que constitui um regime
de autonomia e a sua ligação com as exigências dos povos indígenas.
Regime de
Autonomia
A autonomia é um sistema pelo qual os povos indígenas
podemexercer seu direito à livre determinação sob o marco de seus respectivos
Estados. Para ela, são imprescindíveis o reconhecimento jurídico e político da
existência dos povos indígenas (comunidades étnicas ou nacionais) e sua
configuração em coletividades políticas, em um marco estatal baseado na
diversidade sociocultural. Tal reconhecimento implica na configuração de um
regime de autonomia, pelo qual as coletividades indígenas teriam capacidades
especiais em conduzir livremente seus modos de vida, exercer o controle de seus
assuntos, gerenciar certas questões por si mesmas e exercer um conjunto de
direitos. O regime de autonomia compreende, assim, os seguintes elementos
fundamentais:
1) O Autogoverno (governo autônomo). O regime de autonomia configura um
governo próprio ou autogoverno para certas coletividades, que podem dispor de
autoridades próprias com capacidade de tomar decisões em determinadas esferas e
exercer poderes para regrar a vida interna e a administração de seus assuntos.
Historicamente, os povos indígenas têm mantido alguma forma de governo próprio,
que tem sido fundamental para a reorganização e a reprodução de suas formas de
vida. Mas a possibilidade desses governos serem autônomos hoje e de seus
membros se autodeterminarem coletivamente é algo que vai além: depende de sua
condição política – enquanto povos – no seio da estrutura política da sociedade
mais ampla na qual estão inseridos. Por isso, o ideal de autogoverno de muitos
povos indígenas se estende a uma enérgica defesa do princípio de
autodeterminação, coletiva em essência. Quando se decide exercer tal princípio
através de um regime de autonomia dentro do Estado nacional, isso implica em
transformações que tornem possível o seu exercício. Essa não é uma consequência
óbvia, e na discussão latinoamericana (e, em particular, mexicana), um setor
tem pretendido impor o critério de autonomia sem mudanças nacionais.
Por isso, o autogoverno é um dos elementos fundamentais
da autonomia, que, sem ele, não pode existir. Mas o autogoverno não é o mesmo
que a autonomia. Até o presente, os mecanismos conhecidos (e adotados por
certos países) para que as coletividades étnicas ou nacionais possam se
governar efetivamente (ou exercer seu direito ao autogoverno) são a autonomia e
o federalismo. Trata se de sistemas instituídos dentro dos Estados existentes,
cujo funcionamento implica na criação de novos âmbitos de governo na
organização político-territorial do país, para que tais coletividades possam
se
beneficiar de uma repartição justa de poderes e recursos entre o governo
central e os governos autônomos, ou, em seu caso, federais. O regime de
autonomia implica, assim, em inovações políticas tanto no seio dos povos
indígenas quanto na estrutura do Estado. Por isso, a autonomia é mais que o
simples reconhecimento daquilo que já existe, ou daquilo que os povos indígenas
praticam. Ela implica em novos direitos, bem como em modificações na
organização político-territorial do Estado, para que os povos indígenas sejam
parte de uma redistribuição de poderes e recursos que lhes permita a livre
condução dos seus modos de vida, enquanto se amplia sua participação política
na sociedade nacional.
2) Base territorial. A autonomia também implica na definição de âmbitos territoriais
onde as coletividades correspondentes (povos, grupos nacionais ou étnicos)
possam exercer suas responsabilidades de autogoverno e praticar um conjunto de
direitos. Trata-se da configuração de territórios com um claro conteúdo
jurisdicional, onde os povos indígenas tenham jurisdição para exercer o governo
e a justiça.
O território constitui uma demanda consistente entre os
povos indígenas, por diversos motivos: porque é o assento de suas comunidades e
proporciona o meio e os elementos para as atividades de produção (agricultura,
pastoreio, criação de gado, caça, coleta, pesca, etc.) e de reprodução
material, social, cultural, espiritual e simbólica da coletividade e de seus
membros. Para que a comunidade siga existindo como tal, é necessária a
reprodução das relações entre os indivíduos e a coletividade a que pertencem
sob as condições objetivas e subjetivas de apropriação da terra / território.
Essas formas de apropriação foram afetadas em diferentes graus pelo
colonialismo e o neocolonialismo; e a atual expansão global do capitalismo
multinacional, que compreende formas renovadas de invasão e colonização dos
territórios indígenas, está transtornando seriamente as relações das
comunidades com o território / terras, e dos indivíduos com suas comunidades. A
autonomia se afirma como uma forma de defender esses vínculos essenciais para a
reprodução de seus sistemas identitários. Porém, nem todas as organizações
indígenas associam solidamente a defesa do território (que compreende a defesa
da natureza, a produção e a cultura) à autonomia.
A tendência geral dos povos indígenas tem sido associar
seus direitos territoriais ao direito à livre determinação como fundamento da
luta contra o crescente despojo de suas terras, recursos, conhecimentos e
espaços territoriais por parte do capital multinacional. Mas nem todos
relacionam de maneira igual os seus direitos territoriais a um regime de
autonomia. Algumas organizações indígenas simplesmente assumem a definição
restritiva do Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que
enfatiza “a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam
ou utilizam de alguma outra maneira” (artigo 13.2). O território assim
definido, enquanto habitat, não tem implicações políticas ou jurisdicionais, o
que dificulta a possibilidade dos povos indígenas garantirem seus direitos
territoriais. Pois se o território não é reconhecido como uma entidade jurisdicional
onde as coletividades correspondentes adquirem e exercem as funções de
autogoverno em seus assuntos, dificulta-se a capacidade dos povos indígenas
sustentarem o controle sobre seus territórios e protegerem seus direitos sobre
as terras, a natureza e o conhecimento frente aos interesses externos.
Parágrafo:No regime de autonomia, o território tem implicações de
caráter político, jurisdicional, administrativo, econômico, cultural, simbólico
e ecológico. Para que os povos indígenas possam exercer seus direitos (de
autogoverno, territoriais, econômicos, culturais), é necessário que o
território se configure como território autônomo. Em outras palavras, como a
autonomia implica em direitos sociopolíticos, instituições, etc., tais
prerrogativas devem ter uma base firme, um espaço de realização e um território
que vá além da demarcação das terras como parcelas ou unidades produtivas – ou
seja, mais do que o habitat.
Trata-se de uma base política e territorial; trata-se de um território com
jurisdição própria, para que as coletividades correspondentes possam exercer as
tarefas de governo, justiça e outros poderes.
A configuração de territórios autônomos pressupõe a
criação de novos níveis de governo (correspondentes às novas entidades
territoriais autônomas) e a sua inclusão em um novo ordenamento
político-territorial nacional, para que as novas entidades territoriais possam
ser parte de uma nova distribuição do poder que lhes atribua certas funções ou
competências hoje concentradas no governo central ou em outras entidades
estatais. Parte dos poderes que precisariam ser atribuídos a esses novos
âmbitos territoriais autônomos e aos seus respectivos governos autônomos dizem
respeito aos direitos territoriais dos povos indígenas (meio ambiente, terras,
recursos, conhecimentos, patrimônio cultural, intelectual e natural, etc.).
Os povos indígenas que chegam a articular o regime de
autonomia com o território costumam adotar diversas estratégias imediatas quando
as expectativas de alcançarem autonomia em seus respectivos países são remotas.
Elas podem incluir a construção de autonomias “efetivas” e autogovernos “de
fato” – ou seja, autonomias e autogovernos sem o reconhecimento e o respaldo
jurídico e político do sistema estatal-nacional – ou outras medidas que
considerem adequadas para a rearticulação e a ação política coletiva. O
objetivo imediato de todas elas é proteger seus direitos territoriais e
assegurar sua base territorial do despojo e da exploração por parte de empresas
multinacionais e nacionais florestais, minerais, hidrelétricas, de energia
eólica, farmacêuticas, de turismo, etc. O risco é que essa estratégia, que em
muitos casos é adotada sem abandonar uma perspectiva de longo alcance, termine sendo
a única estratégica e perca a conexão com os impulsos transformadores
originais. É um risco porque as estratégias de resistência, por si mesmas, não
conseguem conter os efeitos negativos do capital multinacional e do sistema
político dominante sobre os sistemas socioculturais dos povos indígenas.
3) Competências: dizem respeito ao conjunto de poderes e funções atribuídas às
entidades territoriais autônomas pelo ordenamento jurídico nacional. Um dos
fundamentos da autonomia é a descentralização política e a redistribuição de
poderes entre o Estado e as entidades autônomas. Tal descentralização deve ser
acompanhada dos serviços e recursos econômicos correspondentes às competências
das matérias transferidas. Ou seja, para que as autoridades e instituições
autônomas realizem as tarefas de governo e justiça, que a própria ordem legal
lhes atribui, é imprescindível que se possam administrar os próprios recursos e
acessar os fundos nacionais. As competências das entidades autônomas costumam
ser em matéria política, econômica, administrativa, cultural, educacional,
social, de saúde, judicial, de manejo de recursos e conservação da natureza.
Certamente, o tipo de matérias e a hierarquia das competências dependem da
negociação política levada a cabo a seu tempo.
Os povos indígenas têm manifestado que querem assegurar
certos assuntos próprios de suas coletividades na relação com os poderes
externos e garantir a autonomia nas decisões internas. Os povos indígenas que
têm se apropriado da exigência de um regime de autonomia têm incluído em seus
programas de busca de autonomia poderes e faculdades adequadas para
desenvolverem sua capacidade de autogoverno; para decidirem coletivamente as
normas de uso, preservação, aproveitamento, controle e defesa de seus
territórios, terras e recursos naturais; para formularem e executarem planos e
programas econômicos, sociais, educacionais e culturais em sua jurisdição; para
fomentarem o uso e o florescimento de suas próprias línguas; para exercerem seu
sistema jurídico e as normas que regulam a vida dentro das comunidades e do
conjunto de comunidades que compõem o povo indígena.
Essas exigências estão expressando não só um interesse em
conservar seus sistemas identitários, mas também desenvolver seu potencial
criativo e inovador pelo estabelecimento de novas relações com a sociedade
nacional e com o Estado reconfigurado em termos de autonomia. Por isso, a
autonomia implica em reconhecer novos direitos para que os povos indígenas
possam ampliar suas liberdades e adquirir as competências e faculdades, além de
desenvolver, enriquecer e também modificar o que considerem necessário em seus
complexos socioculturais.
4) Participação e representação política na vida nacional. Os povos indígenas têm sido privados
do direito de participar de todas as instâncias nacionais e regionais onde são
decididas e formuladas as políticas e leis que lhes dizem respeito. A
participação dos povos indígenas nos processos institucionais do país, para que
possam incidir sobre a tomada de decisões, é um direito e uma derivação do
regime de autonomia. Trata-se da participação dos povos indígenas tanto nos
respectivos âmbitos de suas entidades autônomas quanto no conjunto da vida
política nacional. O objetivo é a inclusão e a presença pública dos povos
indígenas na comunidade política nacional. É o reconhecimento de que os povos
indígenas são igualmente parte da sociedade nacional, e de que por isso mesmo
devem participar nas instituições nacionais onde decisões são tomadas, enquanto
que a sua presença tornaria essas decisões mais representativas dos grupos
constitutivos da sociedade. A sua participação é imprescindível para que possam
promover e defender seus direitos de autonomia nos distintos órgãos
(legislativos, administrativos, judiciários e governamentais) nacionais.
A exclusão histórica dos povos indígenas da vida política
nacional tem sido um dos motivos pelos quais não apenas os seus interesses e
pontos de vista vêm sendo negligenciados, mas também pelos quais as decisões
(legislativas, administrativas, judiciais e governamentais) se inclinam em
favor dos grupos dominantes. Assim, sua exclusão não apenas tem sido um grave
impedimento para a igualdade política, mas tem também funcionado como um
mecanismo para impor aos povos indígenas leis, programas e medidas que, em
geral, são-lhes prejudiciais. Com o estabelecimento do regime de autonomia,
busca-se corrigir essa situação, determinando os preceitos constitucionais que
garantam a plena inclusão e participação política na vida nacional. Isso
implica necessariamente em uma reorganização institucional.
Por exemplo, a representação dos povos indígenas nos
congressos ou assembléias legislativas nacionais pressupõe certas reformas
capazes de tornar a sua inclusão algo efetivo. O objetivo não é apenas corrigir
a representação deficitária dos povos indígenas nos órgãos legislativos através
da reserva de assentos para esses grupos, mas sim, e acima de tudo, fazer com
que a representação dos povos favoreça a promoção, a salvaguarda e a
consolidação dos seus direitos de autonomia. Assim, a representação indígena
seria uma representação das entidades territoriais autônomas. Isso inclui a
questão dos mecanismos de eleição de representantes indígenas: para que os
povos indígenas possam ingressar nos órgãos legislativos nacionais, fazem-se
necessárias novas formas de redistribuição dos distritos eleitorais.
Especificamente, se a representação está ligada à autonomia, o critério
geralmente usado é delimitar os distritos ou circunscrições eleitorais em
correspondência com as fronteiras das entidades territoriais autônomas. Outras
questões que requerem revisão incluem a interpretação dominante sobre a eleição
de representantes através dos partidos políticos. Os povos indígenas encontram
nos partidos tradicionais um obstáculo adicional à garantia de sua participação
e representação política na vida nacional.
Parte das demandas dos povos indígenas gira em torno das
exigências de inclusão e participação política nas assim-chamadas instâncias de
discussão e decisão nacional. Certamente existem povos indígenas (a maioria,
assentada em zonas de selva) que exigem seu direito de viver em isolamento, e
sua decisão deveria ser respeitada. Porém, por motivos históricos, a grande
maioria dos movimentos indígenas que assumiram a autonomia não se propõe ao
isolamento. O que muitos deles defendem é que, enquanto seus respectivos países
não transformarem as relações entre os povos indígenas, o Estado e a sociedade
em geral – e, portanto, enquanto o sistema sociopolítico e institucional do
país se mantiver igual e os povos indígenas prossiguirem sem um regime de
autonomia –, a participação dos indígenas nas instâncias governamentais e
legislativas só pode servir para legitimar o sistema dominante e desvirtuar o
sentido fundamental das exigências dos movimentos indígenas. Certamente há
outras organizações indígenas que consideram que é possível combinar a luta
pela autonomia com a presença de representantes indígenas nas instâncias
nacionais atuais.
Em suma, o regime de autonomia seria uma peça central na
configuração de um Estado pluriétnico ou plurinacional. A esse respeito, é
preciso distinguir o Estado-nação do Estado plurinacional ou pluriétnico. No
tocante à presença de diversos grupos étnicos e nacionais existentes dentro de
sua jurisdição, o Estado-nação é aquele que se configura como encarnação de uma
só nacionalidade. Portanto, esse tipo de Estado é conformado a partir de uma
cultura, uma economia, um direito e um sistema de valores congruentes com a
classe dominante da nacionalidade dominante, enquanto nega a diversidade
sociocultural existente no país. Também são considerados Estados-nações aqueles
que, apesar de reconhecerem certos direitos e proteções aos diversos grupos
étnico-nacionais existentes em seu território, não77 conseguem transformar a configuração monoétnica do
Estado. Na atualidade, muitos Estados se consideram multiculturalistas, mas
isso não os torna necessariamente Estados pluriétnicos ou plurinacionais. O
multiculturalismo tem sido definido como “a lógica cultural do capitalismo
multinacional” e como instrumento de domesticação e anulação dos aspectos
transformadores contidos nas queixas dos movimentos socioculturais (Žižek,
1998; Díaz- Polanco, 2006).
Estados
pluriétnicos ou plurinacionais
Os Estados pluriétnicos ou plurinacionais são os que se
configuram considerando a vinculação do Estado com duas ou mais culturas nacionais,
ou com todas as existentes no país, sem importar o seu número ou a sua
composição demográfica. No sentido estrito, esse tipo de Estado deixa de ser a
personificação de uma só nacionalidade para atribuir equivalências às
nacionalidades em questão.
Os movimentos indígenas na América Latina têm assumido a
exigência de configurar Estados pluriétnicos ou plurinacionais em seus
respectivos países a partir do estabelecimento de novas relações entre os povos
indígenas e o conjunto da sociedade nacional. Eles se baseiam em vários
argumentos, dos quais mencionaremos apenas dois. O primeiro é que os
Estados-nações se configuraram negando injustamente a existência dos povos
indígenas e dos seus direitos, tendo recorrido desde sua origem a diversas
políticas (desde o genocídio, o integracionismo, a igualdade individual e a
discriminação, até a etnofagia) visando a eliminar e dissolver as identidades e
os bens coletivos dos povos indígenas. Os movimentos indígenas têm enquadrado a
estrutura dos Estados-nações na América Latina como colonialista, pelas
relações de opressão impostas aos povos indígenas e pelo despojo sistemático
(mediante leis, ou sem elas) de suas terras, territórios e recursos naturais.
O segundo argumento se baseia em seu direito à livre
determinação: sustenta que, para exercer esse direito sob o marco de seus
respectivos países, é imprescindível a eliminação das relações de opressão,
dominação e despojo, enquanto são decididos os acordos para a configuração de
Estados etnicamente plurais. Esses Estados deveriam garantir o regime de
autonomia e o justo desejo dos povos indígenas reconstituírem seus povos
(fragmentados pelo processo de dominação), reforçarem suas próprias formas de
organização sociopolítica (inter-comunitárias ou macro-comunitárias) e
reconfigurarem seus sistemas e instituições jurídicas, de governo, econômicas,
culturais, etc., distintas das configuradas pelo Estado nacional. A opção pela
autonomia pressupõe, assim, a formação de Estados pluriétnicos ou
plurinacionais. É a aposta por um modelo de Estado que ofereça as condições
favoráveis para o desenvolvimento de uma sociedade pluricultural, capaz de
incluir as distintas formas sociais, culturais, políticas e econômicas das
coletividades étnicas que se assentam no país.
A construção desse tipo de Estado na América Latina
implica em vários desafios. No IV Simpósio Internacional de Autonomia,
realizado em Manágua, Nicarágua, em 2004, Francisco Rojas, indígena colombiano,
então senador, fez alguns comentários sobre questões centrais para o futuro das
autonomias e dos Estados pluriétnicos ou plurinacionais. Rojas indicou a
dificuldade em se construir a autonomia requerida pelos povos indígenas “em
meio a um sistema capitalista e um sistema político que nada têm a ver com o
nosso povo”. A autonomia, a seu ver, não se reduz a falar de “um sistema
político nosso”, mas compreende o conjunto do país; a autonomia tem a ver com a
possibilidade de desenhar um desenvolvimento integral e coerente com as
necessidades dos povos, e, ao mesmo tempo, um desenvolvimento que envolva a
sociedade majoritária do país. A experiência concreta dos povos indígenas
colombianos mostrava a impossibilidade de exercer sua idéia de autonomia apenas
com o reconhecimento jurídico do caráter pluriétnico e plurinacional do país e
de outros direitos fundamentais dos povos indígenas – como é o caso da
Constituição colombiana de 1991 –, sendo que as estruturas políticas e
econômicas do país continuam as mesmas de antes do reconhecimento
constitucional (Memória do IV Simpósio Internacional de Autonomia, 2005).
Para alcançar o projeto de autonomia – e este é um
desafio inovador – os povos indígenas requerem necessariamente a busca do
consenso das maiorias do país em torno do compromisso sobre princípios básicos
comuns aos quais possam convergir. Essencialmente, estes princípios seriam o
compromisso com o valor da comunidade, o compromisso com o autogoverno e o
compromisso com o princípio da diversidade.
A
configuração de Estados pluriétnicos e plurinacionais
Em termos gerais, a demanda de autodeterminação dos povos
indígenas não é defendida em termos de independência, mas sim em meio à
disposição de exercer esse direito em um sistema autônomo dentro do país em que eles estão inseridos.
Essa é uma primeira diferença em relação à tendência de todo movimento nacional
nos séculos XIX e XX, que era a separação estatal e a formação de um Estado
nacional independente. Na atualidade, vários movimentos buscam tal objetivo (o
País Basco, os curdos e o Tibete, entre outros). O que interessa destacar aqui
é que essa disparidade – entre os movimentos dos povos indígenas em prol da
autonomia, sem, no entanto romper com a unidade nacional, e os que buscam se
separar e construir seu próprio Estado-nação – implica em estratégias e
objetivos políticos diferentes, num certo sentido. Em ambos os casos, há uma
exigência de igualdade de direitos entre os grupos nacionais e um
questionamento da estrutura do Estado-nação. Porém, no primeiro caso, a crítica
conduz à conveniência de reformular os termos da relação com o Estado-nação
pré-existente, de modo que este deixe de ser a representação de uma só
identidade nacional (de sua cultura e de seus valores), de modo que as diversas
nacionalidades ou os grupos étnicos passem a modelar a vida do Estado, das instituições,
dos valores, da política e da economia. Essa é a defesa da transformação do
Estado-nação em um sentido pluriétnico ou plurinacional.
Os exemplos de Estados multinacionais, como Canadá,
Bélgica e Espanha, resultaram de intensas negociações políticas que tenderam à
redistribuição do poder dentro do Estado, mediante a adoção de uma forma de
autonomia territorial ou de um federalismo com base na identidade
étniconacional. A manutenção desses Estados multinacionais tem implicado em um
processo de constante revisão e renegociação da política etnolinguística, dos
acordos federativos e de autonomia, e da participação dos grupos nacionais nas
instituições do governo central (Rudolph e Thompson, 1992). Qualquer que seja o
caso, a configuração de Estados etnicamente pluralistas tem pressuposto
mudanças constitucionais e institucionais, com inovações políticas importantes.
Transformações semelhantes estão na base das demandas dos atuais movimentos
indígenas.
Entretanto, seria preciso distinguir entre as características
dos grupos nacionais nos países capitalistas ocidentais e as dos povos
indígenas nesses países e nos demais. Em geral, para entender a defesa de
qualquer grupo étnico ou nacional, é preciso levar em conta as suas
particularidades históricas, bem como as particularidades do Estado no qual ele
busca avançar as suas lutas. Antes de tudo, é necessário reconhecer duas formas de coletividades étnicas, distinguíveis a partir do ponto de vista da sua forma de
organização social e de sua integração na economia de mercado. Entre essas
formas, podem existir numerosos elos de transição.
Por uma parte, observamos minorias nacionais plenamente integradas na economia de
mercado e, consequentemente, fundidas no capitalismo desenvolvido de seus
respectivos países. A singularidade dessas coletividades está em certos
elementos culturais compartilhados pelos seus membros, como a língua, a
representação de uma ascendência comum, a memória histórica e a herança
cultural. É justamente sobre essas questões que se assenta a diferença entre
grupos nacionais (opressores e oprimidos), que, ao sustentarem sistemas
econômicos com base na produção mercantil, convergem com o conjunto das nações
capitalistas nas relações socioeconômicas inerentes a81 esse sistema (expressas no predomínio da propriedade
privada e na produção de mercadorias, com base na relação entre capital e
trabalho assalariado). Essa competição leva implícita a convergência de alguns
valores e princípios liberais, que, como afirma Jameson, “são gerados
organicamente pelo próprio sistema do mercado e estão dialética e
indissoluvelmente ligados a ele” (Jameson, 2003: 10). Em suma, em Estados
plurinacionais como Canadá, Espanha e Bélgica, as diferenças (nada
desprezíveis) entre as nacionalidades referem-se a certas características
históricas e culturais. Os conflitos nesses Estados costumam ocorrer pela falta
de liberdade e igualdade real entre as diversas nacionalidades, bem como por
interesses entre as classes economicamente dominantes.
Por outro lado, existem os povos indígenas que não estão plenamente integrados
no intercâmbio comercial e, por isso mesmo, não se dissolveram na formação
social capitalista. O grau de integração de cada povo na economia de mercado
depende de diversas condições (geografia, caráter das coletividades, etc.) e
das particularidades concretas do país no qual ele está inserido, especialmente
o grau de desenvolvimento do capitalismo e de sua integração no mercado global.
Em todo caso, a particularidade das identidades culturais dos povos indígenas
não se reduz a um conjunto de características particulares como a língua, a
visão de mundo, as crenças e os costumes, mas sim, e fundamentalmente, ao fato
de que elas sustentam (e querem seguir sustentando) formas sociais e culturais
cujo objetivo econômico predominante não é a produção de bens em função do
valor de troca, mas sim do valor de uso. Em outras palavras, trata-se de povos
cujo objetivo principal não é a produção e o intercâmbio comercial, mas sim a
defesa de formas de produção e distribuição de bens materiais a partir das
necessidades sócio-comunitárias (e não da valorização do capital, ou seja, da
obtenção do lucro). Essas formas se baseiam em princípios e valores (como a
reciprocidade e a redistribuição) que expressam formas de conceber a articulação
dos indivíduos e da sociedade de maneira muito diferente das sociedades
capitalistas liberais.
Certamente, tais formas de produção e distribuição dos
povos indígenas podem ter se alterado em diferentes graus de acordo com a
influência exercida, em cada caso concreto, pela expansão da economia de
mercado e do capital multinacionais sobre suas formas de vida. O ponto é que se
trata de coletividades que sustentam, material e idealmente, valores sociais e
morais distintos dos valores do liberalismo.
Essas diferenças historicoeconômicas entre os povos
indígenas e os povos de tipo europeu ocidental sugerem formas de pluralismo
étnico ou nacional essencialmente distintas. Nos países onde as coletividades
étnicas oprimidas têm se integrado à economia capitalista e “liberalizado” suas
culturas (convertendo-se em comunidades étnicas liberais), o reconhecimento da
diversidade étnica compreende basicamente um compromisso com o pluralismo
linguístico e cultural. Por isso, não existe um desafio à tradição liberal em si, mas sim o apelo a ela, como um princípio, com vistas a
reivindicações próprias. E é por isso que as suas queixas podem ser compatíveis
com uma visão liberal da diferença (à maneira, por exemplo, de W. Kymlicka). Em
suma, o que se faz, nesse caso, é apelar à perspectiva do Estado “neutro” e
puramente “procedimental”, que ganhou força em certas versões liberais
desenvolvidas no último terço do século XX (Rawls, Dworkin, etc.), agregando um
compromisso com o respeito pela pluralidade das visões metafísicas presentes na
sociedade.
Em contraste, nos países onde as coletividades étnicas
oprimidas sustentam formas sociais e culturais não-capitalistas e não-liberais,
trazendoas na base de suas demandas, o reconhecimento da diversidade étnica
compreenderia um compromisso muito mais profundo com um pluralismo econômico,
jurídico, cultural, linguístico e político. O motivo disso reside precisamente
no fato de as reivindicações essenciais dos povos indígenas implicam, sim, em um desafio aberto aos princípios e valores
que conformam a tradição liberal. Em suas demandas e lutas, elas incluem o fundamento de uma visão
própria, não liberal, daquilo que constitui um ideal de vida. Um exemplo disso
é o sumak83 kawsay, o
“bem viver” proposto pelas organizações indígenas no Equador e na Bolívia como
princípio regente para reorganizar as sociedades nacionais (Dávalos, 2008). O
que se destaca nesse conceito indígena é o fato de que ele implica em uma forma
distinta de relação com a natureza, a sociedade e a vida democrática; e implica
na recusa da forma liberal de desenvolvimento e crescimento econômico. Assim
sendo, em relação ao mundo liberal, o indígena pressupõe o enfrentamento de
duas formas de ver e estar no mundo. Aí reside sua transcendência.
O modelo de Estado que resultaria da adoção jurídica de
um ou outro pluralismo seria diferente em aspectos importantes. Em qualquer um
dos dois casos, a configuração de um Estado pluriétnico ou plurinacional
implica no reconhecimento do direito à autonomia das coletividades étnicas que
integram o país e o estabelecimento de um regime de caráter autônomo ou
federal. Isso inclui a adoção de novos princípios que caracterizem a nova
estrutura do Estado, como os princípios de unidade, autonomia, solidariedade e
igualdade de trato entre as coletividades étnicas e as entidades territoriais
integrantes[1].
Mas o pluralismo que está na base das demandas dos povos
indígenas teria implicações de maior alcance, uma vez que as diferenças entre
os povos indígenas e a nacionalidade dominante engendram formas socioeconômicas
e culturais distintas. Aqui, as relações de domínio são estruturais: a formação
social capitalista do país e os valores e instituições liberais impedem a
autorrealização das formas sociais indígenas. Por isso, nas condições históricas
atuais, o pluralismo propalado implica na inclusão das formas sociais,
econômicas, políticas e jurídicas próprias dos povos indígenas, bem como dos
valores que definem os princípios de sua visão sobre o ideal da vida. Trata-se,
em suma, de uma visão da pluralidade distinta da anterior (que tem como base o
liberalismo). A pergunta chave é se isso seria possível sob o marco do
capitalismo.
Na América Latina, há dois exemplos de inovações
políticas com vistas a configurar Estados pluriétnicos e plurinacionais: a
Nicarágua e a Bolívia. Ambos surgem de movimentos populares que buscam
transformações nacionais.
Na Nicarágua, a Constituição de 1987 (reformada em 1995)
estabelece como princípios fundamentais da nação: 1) o pluralismo político,
social e étnico, reconhecendo o direito dos povos indígenas manterem e
desenvolverem sua identidade e cultura; 2) o reconhecimento das distintas
formas de propriedade (pública, comunitária, cooperativa, associativa e
privada); em especial, reconhecem-se as formas comunais de propriedade da terra
dos povos indígenas, além do desfrute, uso e aproveitamento das águas e bosques
de suas terras comunais; 3) a criação do regime de autonomia para os povos e as
comunidades étnicas da Costa Atlântica, instituindo-se duas regiões autônomas
que fazem parte da organização politicoadministrativa do país; 4) a eleição e a
participação de deputados das regiões autônomas na Assembléia Nacional[2]. Em suma, trata-se de uma
Constituição que institui formalmente um Estado pluriétnico.
A partir desse e de outros instrumentos legais (como o
Estatuto ou Lei de Autonomia), os povos
indígenas e suas comunidades étnicas vêm construindo
suas instituições autônomas. Mas existem vários problemas cruciais. Um deles
tem a ver com a transferência das competências e dos recursos do Estado às
regiões autônomas. Essa problemática própria do processo de autonomia foi retardada na Nicarágua por motivos de
ordem politicoeconômica. Desde 1990, quando os conselhos regionais das
respectivas regiões autônomas foram eleitos pela primeira vez, a administração
do país ficou nas mãos de governos neoliberais, opostos a um regime de
autonomia. A partir de então, a neoliberalização do Estado e da economia
nacional tem repercutido severamente nas regiões autônomas. Em lugar de descentralização
politicoadministrativa e de uma redistribuição de recursos, que são partes
essenciais de todo processo de autonomia, tem-se produzido uma recentralização
do poder e dos recursos naturais. Enquanto isso, a reorganização da economia
nacional em função do assim-chamado “livre mercado” tem propiciado “uma nova
penetração e uma colonização historicamente original do inconsciente e da
natureza” (Jameson, 1995: 81). É preocupante que vários dos membros dos
conselhos regionais autônomos, frente aos exíguos recursos estatais na região,
tendam a assumir, sem questionamentos, a ideologia do mercado e do investimento
estrangeiro como solução para os problemas socioeconômicos das regiões, quando
ela é precisamente a causa da crescente destruição dos sistemas autóctones de
produção, distribuição e consumo. Ao aceitar-se o slogan do mercado, são
extraviados os objetivos da luta pela autonomia, que inclui a autonomia das
formas socioeconômicas dos povos indígenas, que dão sustento a todo um sistema
cultural. O que consola é o fato de que diversos setores das regiões autônomas
mantêm uma postura crítica e consistente a respeito desse processo, e sobre a
autonomia como instrumento para alcançarem um futuro melhor.
Um segundo problema, ligado ao anterior, é o das
condições socioeconômicas das regiões autônomas. As grandes necessidades
sociais herdadas de uma história de despojo e exploração não foram resolvidas;
pelo contrário, a neoliberalização do país provocou uma maior pobreza e
desigualdade social e inter-regional, incluindo a Costa Atlântica. Além disso,
o capital multinacional nas regiões, longe de melhorar a situação, tem
provocado uma maior depredação de seus recursos naturais.
Houve sucessos significativos nos planos institucional e
sociocultural. A autonomia vem favorecendo o diálogo e a tolerância entre os
diversos grupos socioculturais, bem como a valorização da diversidade
socioétnica do país (Frühling, González e Buvollen, 2007). O caráter
pluriétnico (miskitos, sumus, ramas, garífonas, criollos e mestiços) das
regiões autônomas da Costa Atlântica merece especial atenção pelas inovações
que pressupõe em contraste com outras experiências de autonomia. Na Nicarágua,
a delimitação territorial das regiões não se baseia em uma única identidade
étnica: ela inclui diversos grupos étnicos, o que significa, por sua vez, o
estabelecimento de direitos iguais independentemente do número de seus membros.
O fortalecimento da perspectiva pluriétnica das regiões autônomas (em seus
órgãos de governo, nas relações sociais, políticas, culturais, etc.) é uma das
preocupações persistentes.
A experiência do processo de autonomia na Nicarágua tem
sido uma referência central para os movimentos indígenas da América Latina.
Recentemente, na Bolívia, os povos indígenas conseguiram unificar diversas
forças sociais e políticas em torno de uma nova concepção sobre a diversidade
que se afirmou em uma
Constituição (2007) notavelmente inovadora. A diversidade
cultural é o eixo fundamental de toda a constituição e “a base essencial do Estado
plurinacional comunitário”. Assim, o compromisso com o princípio da diversidade
se expressa:
1) Nos atributos do Estado, indicando explicitamente os
valores e os “princípios ético-morais” próprios de uma “sociedade plural”[3], incorporando os
princípios e valores que normatizam a vida coletiva de cada comunidade
sócio-cultural, bem como os que constituirão o marco geral da nova unidade;
2) Na configuração do sistema de governo, que parte da
forma democrática participativa, representativa e comunitária, com equivalência
de condições entre homens e mulheres;
3) Na composição do órgão
legislativo, a “Assembléia Legislativa Plurinacional”,
definindo vários mecanismos ligados à delimitação de
circunscrições eleitorais (departamentais, uninominais e especiais indígenas) para garantir a participação proporcional dos povos e
nações indígenas;
4) Na
instauração do pluralismo jurídico, para o qual são criadas duas instâncias: a
jurisdição ordinária e a jurisdição indígena, que gozarão de igual hierarquia,
além das competências jurisdicionais das entidades territoriais autônomas;
5) Na
conformação do “Tribunal Constitucional Plurinacional” por magistrados e
magistradas que tenham exercido sua profissão nas jurisdições ordinárias e
indígenas, em número igual de membros eleitos pelo critério de
plurinacionalidade;
6) Na
criação do “Conselho Eleitoral Plurinacional”;
7) Na
organização territorial do Estado, com base em um sistema autônomo de vários
níveis: a autonomia dos departamentos, a autonomia regional, a
autonomia municipal
e a autonomia de territórios indígenas. Indicam-se em cada caso a
composição dos órgãos de governo autônomo e as diversas formas de eleição das
autoridades, listando as competências e faculdades de cada unidade autônoma;
8) Na
estrutura e organização econômica do Estado, que se baseia em uma economia
social e comunitária; e
9) No
estabelecimento dos direitos e das liberdades das pessoas, e dos direitos
coletivos das nações e dos povos indígenas.
Essa é a aposta em um modelo de Estado que ofereça as
condições favoráveis para o desenvolvimento de uma sociedade plural, incluindo
as diversas formas sociais, culturais, políticas e econômicas das coletividades
étnicas. Tanto na experiência da Nicarágua como na da Bolívia, as autono8 mias buscam abrir uma brecha no muro da tradição
liberal. E esse é o motivo pelo qual o desenvolvimento desse projeto tem
encontrado uma inflamada resistência nos setores liberais dominantes.
Ironicamente, na Bolívia, quis-se destruir o fundamento de autonomia do projeto
plurinacional impulsionado pelos povos indígenas (aliados a outros setores
populares), opondo-se-lhe um “autonomismo” que era, ao mesmo tempo, a negação
do espírito da autonomia e um álibi para restaurar plenamente o poder
oligárquico que foi erodido nos últimos anos pelo governo de Evo Morales.
Referências
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[1] Com o princípio de solidariedade, busca-se corrigir os
desequilíbrios ou as desigualdades econômicas
inter-territoriais
e impedir o estabelecimento de privilégios econômicos em favor de alguma
entidade
territorial
autônoma.
[2] Além desses princípios e direitos
sobre o regime de autonomia e as formas de propriedade das terras
e dos
recursos das comunidades indígenas, estabeleceram-se outros direitos e
preceitos sobre: a livreexpressão
e
preservação de suas línguas, arte e cultura; a educação inter-cultural em suas
línguas maternas
(art.
121); a participação de deputados das regiões autônomas na Assembléia Nacional
(art. 132); e a
faculdade
de iniciativa de leis pelos conselhos regionais autônomos (art. 140).
85
[3] Por exemplo, o artigo 8, inciso II
da Constituição, diz: “O Estado se sustenta nos valores de unidade,
igualdade,
inclusão, dignidade, liberdade, solidariedade, reciprocidade, respeito,
complementaridade,
harmonia,
transparência, equilíbrio, equidade social e de gênero na participação,
bem-estar comum, responsabilidade,
justiça social, distribuição e
redistribuição dos produtos e bens sociais para o bom viver”.
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