O QUE É A HISTÓRIA E PARA QUE SERVE?

A função da história, desde seu início, foi a de fornecer à sociedade uma explicação de suas origens (ou seja, uma explicação genética). A história se coloca hoje em dia cada vez mais próxima às outras áreas do conhecimento que estudam o homem (a sociologia, a antropologia, a economia, a geografia, a psicologia, a demografia, etc.), procurando explicar a dimensão que o homem teve e tem em sociedade. Cada uma dessas áreas tem seu enfoque específico. Uma visão mais ampla e mais completa, entretanto, exige a cooperação entre as diversas áreas. Isso tem sido tentado pelos estudiosos com maior ou menor êxito, no chamado trabalho interdisciplinar, pois inclui diferentes disciplinas.
A história procura especificamente ver as transformações pelas quais passaram as sociedades humanas. A transformação é a essência da história; quem olhar para trás, na história de sua própria vida, compreenderá isso facilmente. Nós mudamos constantemente; isso é válido para o indivíduo e também é válido para a sociedade. Nada permanece igual e é através do tempo que se percebem as mudanças.
Eis por que se diz que o tempo é a dimensão de análise da história, O tempo histórico através do qual se analisam os acontecimentos não corresponde ao tempo cronológico que vivemos e que é definido pelos relógios e calendários. No tempo histórico podemos perceber mudanças que parecem rápidas, como os acontecimentos cotidianos: por exemplo num golpe de estado, cujo desenrolar acompanhamos pelos jornais. Vemos também transformações lentas, como no campo dos valores morais: o machismo, por exemplo, é um valor que impera na maior parte das sociedades que a história estuda, a ponto de se poder dizer que a história que está escrita mostra um processo praticamente só conduzido pelos homens. No Ocidente, aproximadamente de um século para cá, surge um questionamento mais constante desse valor milenar. Isso se dá em grande parte devido a uma participação maior da mulher no processo de produção: à medida que as mulheres saem da esfera exclusiva do lar e começam a refletir na realidade.
A caminhada que a humanidade fez explica muito sobre a própria humanidade, assim como o que uma pessoa faz explica muito sobre ela. E à caminhada da humanidade que damos o nome de processo histórico.
Desde que existem sobre a terra, os homens estão em relação com a natureza (para produzirem sua vida) e com os outros homens. Dessa interação é que resultam os fatos, os acontecimentos, os fenômenos que constituem o processo histórico.
Quase sempre que a história da humanidade nos é apresentada, é a evolução da sociedade européia ocidental que é tomada como modelo de desenvolvimento desse processo histórico. Essa posição eurocêntrica é errada: do ponto de vista da história, a evolução da sociedade européia ocidental, com seu alto grau atual de desenvolvimento tecnológico, não deve ser um padrão de comparação para se estudar a história de qualquer outra parte do sistema capitalista, como, por exemplo, a América Latina. Não se deve, por meio desse tipo de comparação, julgar se uma sociedade está “atrasada” ou “adiantada” em seu desenvolvimento histórico.
Não há uma linha constante e progressiva de desenvolvimento na história da humanidade, pois temos, ao mesmo tempo, hoje em dia, sociedades com formas de vida primitivas, consideradas ainda no chamado período pré-histórico (por exemplo, como certas tribos na Nova Zelândia), e sociedades com um grau de desenvolvimento que permite explorações interplanetárias (como fazem os americanos e os russos). Não se percebe, ainda como exemplo, uma linha constante e progressiva da passagem, a partir da Antiguidade, do trabalho escravo ao trabalho assalariado: a escravidão quase que desaparece na Europa Ocidental, durante a Idade Média, para reaparecer na Idade Moderna, imposta pelos europeus nas Américas, como forma de relação de trabalho dominante. Não se deve, portanto, identificar a idéia de processo histórico com uma idéia de progresso necessário.
Dizer que o processo histórico é contínuo não significa dizer que ele obedeça a um. desenvolvimento linear: não é uma linha reta com tendência constante, incluí idas e vindas, desvios, avanços e recuos, inversões, etc. Há mesmo transformações que podem ser vistas como rupturas, pois alteram toda uma forma de viver da sociedade. E, porém, uma ruptura que foi lentamente preparada, que está sempre ligada com algo que já existia, pois não se pode admitir o surgimento de uma situação nova sem ligação com as anteriores.
    As alterações no processo histórico são decorrentes da ação dos próprios homens, os agentes da história. Não é uma evolução natural: a história da humanidade é diferente da história da natureza e a natureza também tem sua história, pois ela também passa por mudanças; todo o universo, nas suas mais diferentes partes, sofre mudanças, e por isso tem sua história. Mas a história da humanidade é diferente justamente por ser feita pelos homens. São os homens constituídos em sociedade que, embora nem sempre conscientemente, atuaram e atuam para que as coisas se passem de uma ou de outra maneira, para que tomem um rumo ou outro. A entidade “História” não existe. Uma força superior externa aos homens, que os conduzisse como veículos, não existe.
Não se deve buscar uma razão para os acontecimentos históricos dentro do conhecimento da própria história; a trajetória do homem na terra é indeterminada, em busca de sua própria razão de ser. Vista em si mesma e por si mesma, ela não faz sentido. O sentido dos acontecimentos históricos não deve ser buscado através do conhecimento histórico, pois a finalidade desse conhecimento não é explicar a razão de ser do homem na terra, não é dar uma justificativa do que aqui estamos fazendo. Sua finalidade é estudar e analisar o que realmente aconteceu e acontece com os homens, o que com eles se passa concretamente. Essa análise não é para buscar uma filosofia da vida, mas para propiciar urna atuação concreta na realidade.
Falamos sempre em “humanidade”; como ela está em constantes transformações, não existe uma “essência humana imutável” desde o início dos tempos, mas homens diversos, em situações diversas. A humanidade não é um todo homogêneo, e a história não a analisa assim.
Na realidade, dificilmente o historiador pode tratar, ao mesmo tempo, de toda a humanidade. Ao escrever a história, em geral ele se ocupa especificamente de uma determinada realidade concreta, situada no tempo e no espaço. Estudam-se uma tribo, um povo, um império, uma nação, uma civilização, como, por exemplo, o povo judeu, antes do nascimento de Cristo; a formação do Império Macedônico, a civilização greco-romana, o surgimento da França, etc. Mas a meta de formulação de uma história-síntese (uma explicação global de todo o processo histórico) não deve ser afastada, embora muitos historiadores acreditem ser ela uma utopia.
O homem é um ser finito, temporal e histórico. Ele tem consciência de sua historicidade, isto é, de seu caráter eminentemente histórico. O homem vive em um determinado período de tempo, em um espaço físico concreto; nesse tempo e nesse lugar ele age sempre, em relação à natureza, aos outros homens, etc. Ë esse o seu caráter histórico. Tudo o que se relaciona com o homem tem sua história; para descobri-la, o historiador vai perguntando: o quê? quando? onde? como? por quê? Para quê?...
    Todos percebemos, por experiência, a ligação básica implícita dentro da idéia geral de tempo: passado-presente-futuro. Para a história, o tempo só interessa nessa perspectiva tripla. O que é preciso fazer é uma história que, mesmo estudando o passado mais remoto, faça-o para explicar a realidade presente. Fazer uma história do presente não é, portanto, escrever sobre o presente, mas sobre indagações e problemas contemporâneos ao historiador.
E preciso conhecer o presente e, em história, nós o fazemos sobretudo através do passado, remoto ou bem próximo.
Conforme o presente que vivem os historiadores, são diferentes as perguntas que eles fazem ao passado e diferentes são as projeções de interesses, perspectivas e valores que eles lançam no passado. Eis por que a história é constantemente reescrita. Como diz o historiador francês Braudel: “a história é filha de seu tempo
Mesmo quando se analisa um passado que nos parece remoto, portanto, seu estudo é feito com indagações, com perguntas que nos interessam hoje, para avaliar a significação desse passado e sua relação conosco. O passado nos interessa, hoje, pela sua permanência no mundo atual.
A história vista como o estudo do passado parece hoje para todos um ponto pacífico. Mas a história também é aceita como o estudo do passado em função de um presente desde os historiadores gregos.
A ligação da história com o futuro, porém, é bem mais sutil: não se pode falar em urna história do futuro. Qualquer colocação nesse sentido é mera especulação. Pode-se falar em tendências, probabilidades, possibilidades históricas, mas não mais do que isso. Fazê-lo seria impor um esquema pré-fixado de como as coisas se devem passar, o que é impossível. A partir de um diagnóstico do presente, ela pode ajudar a delinear ações futuras, não mais que isso.
Seu uso, porém, tem sido uma constante pelos que detêm qualquer tipo de poder, ou mesmo o poder que advém do próprio saber. A história como forma de conhecimento não deve servir a uma manipulação dos poderosos.
Mas, ao explicar as transformações resultantes das ações dos homens, a história leva a perceber que a situação de hoje é diferente da de ontem e procura esclarecer os “cornos” e os “porquês” disso. Para os que não sabem das alterações passadas, a realidade que vivem pode parecer “eterna” ou “intransformável”, e corno tal justificada. Isto leva a uma atitude passiva, à uma conformação. Ao contrário, o conhecimento dessas alterações passadas e a compreensão das condições das mesmas podem levar ao desejo e à atuação concreta em busca de outras transformações.
A finalidade última do conhecimento histórico é, portanto, propiciar o desenvolvimento das forças transformadoras da história, ajudá-las a se tornarem mais conscientes de si mesmas. Só através dessa consciência é que essas forças terão possibilidade de se efetivarem.



Fonte: BORGES, Vavy Pacheco. O que é História. S. Paulo, Brasiliense, 1981. pp 46-54

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